Falácias sobre a literatura

Só para pensar:

Falácias sobre a literatura

1. “A ficção melhora a vida das pessoas.” — Duvido que ler Céline ajude um funcionário de banco a trabalhar com mais eficiência, arrumar uma namorada ou parar de beber.

2. “Há muita inveja no meio literário.” — Sim (dizem), mas com os amigos é o contrário. Torcemos para que seus livros sejam bons, porque dilemas éticos dão certa preguiça: em algum momento precisaremos decidir se os elogiamos hipocritamente, talvez em público, ou deixamos a amizade avinagrar.

3. “Quem lê best-sellers acaba passando para obras mais complexas.” — Só se fizer um esforço que no começo parece inútil, o que a maioria não está disposta a fazer. Por que enfrentar textos que soam árduos e/ou incompreensíveis? Só porque alguém –quase sempre uma pessoa mais velha, solitária, pobre e sem carisma– diz que haverá uma recompensa ao final?

4. “O maior pecado de um escritor é ser chato.” — Contrariando o item anterior, há um prazer específico, que pode ser intenso e viciante, em emergir de um monólogo introspectivo de 900 páginas –às vezes em prosa opaca, sem enredo, humor ou concessões– como um sobrevivente.

5. “Tudo já foi dito.” — Pegue alguns dos temas que estão por aí –polícia moral de Twitter, por exemplo– e conte quantas boas histórias foram publicadas a respeito.

6. “Todos os modos de dizer já foram tentados.” — Assim como cada pessoa tem um timbre de voz, cada autor é capaz de ser bom ou idiota à sua maneira.

7. “A linguagem é capaz de tudo.” — Apenas dentro dos próprios limites. Um cheiro só pode ser descrito com metáforas e associações, que não são e nem mesmo definem o cheiro em si.

8. “O texto ficcional é autônomo.” — Dá para acreditar nisso, como no Papai Noel da isenção, mas a referência de toda escrita é a memória do seu autor, que não necessariamente é a memória de coisas vividas. Só uso a palavra “casa” porque sei o que é uma casa –já morei numa, já entrei em outras tantas, já vi fotos e filmes e ouvi relatos a respeito–, e isso também é autobiografia.

9. “Não há muitos livros sobre futebol no Brasil.” — Frase repetida a cada lançamento de obra sobre o tema.

10. “Há poucos estudos acadêmicos sobre literatura contemporânea.” — Frase repetida a cada notícia de estudo do gênero.

11. “Há cada vez menos espaço para resenhas.” — Ok se desconsiderarmos a invenção da internet.

12. “Escrever contos exige tanto sacrifício quanto escrever romance.” — Sei que é um gênero difícil e tal, mas estou usando critérios objetivos: os anos de dedicação e concentração, os casamentos terminados, os remédios para a lombar.

13. “O escritor é um trabalhador como qualquer outro.” — Diga isso para um cortador de cana.

14. (A falácia oposta, de que se trata de um habitante das esferas elevadas da compreensão humana, é ainda pior: no mínimo, porque gera metáforas do tipo artista no fio da navalha/no olho do furacão/à beira do abismo.)

15. Frase de Henry James, se não me engano, que poderia ser a resposta à preferência atual –muito apreciada em cursos de escrita criativa– por concisão, contenção e exatidão: “Adjetivos e advérbios são o sal e o açúcar da literatura”.

16. (Dá para dizer algo parecido contra outras regras da moda: as que vetam personagens escritores, narradores em primeira pessoa, metalinguagem, capítulos curtos, romances políticos e enredo policial, livros despretensiosos ou que se levam a sério, autores que mendigam popularidade fazendo listinhas.)

17. (Queria aproveitar para falar umas verdades sobre a crítica, os cadernos de cultura, as políticas governamentais de incentivo ao livro, as editoras, os tradutores, os revisores e preparadores, sem contar os leitores e alguns colegas e também meus inimigos e seus familiares, mas o espaço está terminando e melhor deixar para outra).

18. Raduan Nassar numa entrevista à “Veja”, 1997, resumindo a importância do que foi dito nos parágrafos acima: “Eu gosto mesmo é de dormir (…). É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da pesada, deita o corpo e a cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono”.

Por Michel Laub em [http://www1.folha.uol.com.br/colunas/michellaub/2013/07/1313009-falacias-sobre-a-literatura.shtml] Folha de São Paulo, ilustrada, 19/07/2013.

Do pronunciamento de Dilma

Do pronunciamento de Dilma

Ontem nossa presidente (que numa gestão democrática se dá o direito de fazer um ato de violência civil contra a gramática de língua portuguesa e faz descer goela abaixo dos gramáticos mais conservadores uma flexão de gênero que não é gramaticalizada nem de uso corrente) fez um pronunciamento para abrandar ânimos. Como sua fala vem após reuniões com vários de seus ministros, dentre eles a ministra-chefe da casa civil, deveríamos entender que é resultado desse diálogo. Aqui já despontam alguns dos principais equívocos do pronunciamento. A “voz das ruas” não é a voz dos ministros. Se fosse, a possibilidade de haver manifestação seria menor. Alguns desses ministros têm exatamente o perfil sufocante que tanto tem apertado a população brasileira a ponto de um ou outro tem o apelido delicado de ‘trator’ (o mesmo trator que parece passar à luva de pelica sobre quem deveria ser mais rígido/a). Há também um equívoco complexo (que resultou nesse ato corajoso de falar com o povo por dez minutos): Continue Lendo “Do pronunciamento de Dilma”

A voz das ruas

A voz das ruas

A insatisfação é geral! O movimento que teve início após as manifestações em São Paulo e que nos próximos dias ainda resultarão em protestos em várias outras capitais e outras cidades do Brasil (além dos apoios de brasileiros que estão morando em outros países) é fruto de uma insatisfação geral. O Brasil vai bem na foto. Todo cidadão Europeu, pensa que aqui não existe crise, que o país (por estar em ascenção econômica sendo o quinto/sexto mais rico) resolveu seus problemas internos mais gritantes, que os brasileiros estão usufruindo dessa rica e que são hoje o que um cidadão europeu era há 30 anos, que a população tem acesso a direitos básicos com qualidade. Mas não é nada disso. “Quem quiser venha, mas só um de cada vez”, como diz a letra do Mosaico de Ravena (e eu tenho sempre a impressão que na Amazônia a coisa está muito pior). E afinal, quais os porquês dos protestos? Continue Lendo “A voz das ruas”

Caminhos das pedras

Caminho das pedras

Abilio Pacheco

Essa é uma expressão muito comum em se tratando de dar dicas para quem quer se tornar um escritor (literário) ou para quem quer seguir uma profissão que exige algo mais que a técnica. Já é mais do que óbvio, posto já ser deveras repetido, que para se tornar um bom escritor, o ideal é ler, ler bastante. Acrescento ainda que o ideal é ler bastante do gênero de texto que você pretende escrever. Para ser um bom poeta, leia bons poetas. Para ser um bom romancista, leia os bons romancistas.

No finzinho da adolescência, fui cheio de espinhas, empacotado num macacão do SENAI até o campus da Universidade Federal do Pará em Marabá procurar um professor de Literatura para ele me sugerir algum livro (teórico – acho que eu queria um manual ou algo assim) que me ensinasse a escrever poesia. O professor Gilson Penalva, que mais tarde de seria meu orientador de monitoria, exatamente da disciplina Teoria Literária, desconversou, disse-me da inutilidade que seria a teoria, que não haveria material didatizado sobre o assunto e, como eu insisti, terminou me encaminhando para um outro profissional do magistério. Sugeriu que eu fosse falar com uma professora do ensino médio de uma escola estadual.

Ora, eu não sou metade Continue Lendo “Caminhos das pedras”

Memorial da America Latina

Memorial da América Latina

“Suor, sangue e pobreza marcaram a história desta América Latina tão desarticulada e oprimida. Agora urge reajustá-la num monobloco intocável, capaz de fazê-la independente e feliz.” Oscar Niemeyer

A mão em concreto cru tem sete metros de altura e na palma a imagem da América Latina em esmalte sintético faz lembrar sangue escorrendo. Embora ela seja a imagem que temos do Memorial, ela é uma parte de um grande complexo arquitetônico. Sugiro uma visita virtual no site do Memorial.
A visita ao memorial foi incidental, a estação de metrô da Barra Funda era apenas um entreposto para carona. Sobrava-me uma hora até a chegada do transporte. Numa dessas felizes coincidências, eu estava exatamente com a camisa do evento do grupo de pesquisa com a ‘mão’ envolvida pela imagem de um rolo de filme.