Horário de verão

Horário de Verão

Escrevi no twitter e no facebook que nesse início de horário de verão todos acertassem os ponteiros e que o norte agora está atrasado até nos relógios. Não é que eu seja contra ou não goste. Mesmo morando numa região em que o horário não vigora, é possível sentir seus efeitos positivos. Posso assistir a um filme mais cedo. Quando tem futebol, a partida encerra mais cedo. Assisto aos noticiários matutinos também mais cedo. De verdade, o dia continua do mesmo tamanho, mas é possível aproveitá-lo melhor.

Entretanto incomoda-me a sensação de atraso. Sensação que existe de quando em quando durante o ano, mas que fica mais forte durante o horário de verão. Afinal, até a virada de ano vai acontecer primeiro no sul e sudeste. Regiões onde chegam primeiro novidades culturais, inovações, tecnologias etc. A própria atividade intelectual parece mais avançada e é um assombro quando se consegue fazer por aqui algo semelhante ao que se faz por lá. Isso sem contar preços e qualidades de produtos e serviços.

Como disse, a sensação de atraso ocorre o ano todo, mas durante o horário de verão existe um elemento a mais: o tempo, o relógio. Ou no plural. Para onde viramos tem um relógio uma hora adiantado. Já acertei o relógio de meu pc quatro vezes, embora fabricado na zona franca de Manaus, ele não sabe que aqui não é o Sudeste. Meu notebook foi menos teimoso, mas o relógio de parede, que é analógico, misteriosamente apareceu adiantado em uma hora. Como a pilha acabou, ao acertá-lo ligaram a tv e viram o horário no relógio da TV a cabo.

Fui à reitoria da universidade e lá estava a secretária de um setor dizendo que ia para o almoço. Eram onze e quinze, mas o relógio do pc adiantou-se por conta e ela não se deu conta, senão por minha insistência. Os caixas dos bancos funcionam conforme horário de verão, daí não adianta a placa exposta indicando o horário de funcionamento de 6:00 às 22:00. Eles abrem às 6:00 (horário do norte) e fecham às 22:00 (no horário do sul).

Os emails então? E as atualizações de sites e blogs? E o horário das mensagens de texto recebidas por celular? Tudo, tudo, tudo no tal horário de verão. Que se realmente fosse bom duraria o ano todo. Como em outros países em que existe diferença de fuso mas há respeito à diversidade de horário existentes no país. O cidadão pode protocolar um documento onde estiver que o horário que vai valer é o do local onde está o cidadão.

Já existe tecnologia suficiente para o receptor da TV a cabo reconhecer onde estou e acertar o relógio conforme o local. Suficiente também para o caixa eletrônico do banco saber que está instalado nesta e não naquela região e emitir meu saldo ou extrato conforme este horário. Também existe tecnologia para o PC (plugado na net) reconhecer que o acesso está se dando em Belém, não em Campinas, por exemplo. Bem como é possível aos provedores de email saberem onde estamos quando escrevemos. Além disso, esses aparatos não tinham nada que se auto-ajustar ao horário de verão. Especialmente os PCs, que tem um nome bem ligado ao indivíduo e não ao coletivo: personal computer =computador pessoal.

Não é ser contra o horário de verão, mas contra toda uma estrutura tecnocrática, informacional e quejandos que deveria estabelecer entre os habitantes do mesmo país um tratamento, no que tange ao acerto das horas e do funcionamento de instituições, correspondente a hora do local. Um tratamento que fosse, no mínimo, respeitoso à diversidade, ou pelo menos adequado à realidade local.

Como isso não ocorre nem creio que ocorrerá, enquanto eu estiver por essas plagas (como bem Saramago chamou esta região no prefácio ao livro de Sebastião Salgado) enquanto eu estiver por essas plagas, o jeito é aproveitar algumas benesses do horário de verão e conviver com o atraso, o subdesenvolvimento e com as sensações de atraso e de subdesenvolvimento com ou sem relógio uma hora atrás.

Belém, outubro de 2010.

Abilio Pacheco, professor, escritor

3 comentários em “Horário de verão”

  1. As observações a cerca do fuso horário são plausíveis.
    Não devemos apenas nos agradar se os programas vêm mais cedo.
    O Sol é um astro que deve brilhar para todos, e o sistema existente fielmente colocado pelo mestre como tecnocrata divide em classes as regiões brasileiras. É certo que a translação da Terra faz com que as partes do globo variem em luminosidade. Mas, como o professor lembra, não devemos aceitar essa divisão socioecômica que vém com preconceitos e descasos políticos.

    Mais uma vez, estão certas as colocações.

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  2. Tenho essa sensação quase enlouquecida quando começa este confuso HBV, horários de viagens nunca entendo, quando vou lá para as bandas do sul/sudeste nesta época, o dia acaba rápido demais e nunca sei a hora de ir e nem a que chego. Por aqui, como vc mesmo comenta, só agradeço por assistir filme mais cedo (quando posso). São as imposições, até sobre quanto tempo deve durar o tempo já determinado por natureza. Enfim tudo delimitado e limitado para uns ou para todos.

    Abraço

    Silvana Barros

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  3. Aqui parece-me que falas de coisas sociais e sensações pessoais. Morei 4 anos em São Gabriel da Cachoeira, algo Rio Negro, quando morava lá costumávamos dizer:”No Brasil já é tal hora…” Pois sentíamos este exílio. Na verdade o Brasil deveria ter mais de um horário, afinal mais de um fuso horário perfaz seu território. Mas, acima de tudo, independente do horário, o que este ressalta são as enormes diferenças culturais, de distribuição de renda e, por conseguinte de cultura e status. Aqui no sul é uma coisa muito chata, fico dois meses com sono pois tem-se que acordar mais cedo. Cada fuso com seu dia confuso…

    Grande abraço, gostei muito de ler.

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