Amazônia: Beleza / tragédia

Recebi hoje os exemplares da Antologia 100 Poetas Vivos da @tomaaiumpoema . Muito feliz em estar no mesmo volume com Cidinha Maciel , Marcelo Ariel, a querida @jenifferyara_ e outros tantos e outras tantas poetas.

Amazônia: beleza / tragédia

Quando vi você correndo descalça em direção
à árvore quadricentenária na Ilha do Combú [1]
e depois colocando as mãos espalmadas
na base da samaumeira de mais de 50 metros,
imaginei você trançando os cabelos nos galhos;
conectando-se às folhas e ao tronco igual no Avatar [2].

Faz 10 anos.
Hoje leio os primeiros versos de um poema
que você esboçou quase em lágrimas pela manhã:
“Uma árvore virou cinza na Amazônia.
Inúmeras árvores viraram cinza na Amazônia
nos últimos anos.”

Naquele mesmo dia, coloquei meu ouvido na terra.
Disse a você que eu escutava o choro das árvores,
O clamor do solo sangrando, de peixes sufocados,
De outros animais gemendo e convalescendo.
Você me disse que eu não sabia aproveitar a beleza de Gaia,
a energia da floresta, as vozes e os espíritos ancestrais.

Por isso, não lhe disse que também ouvi sons de motosserra,
De árvores crepitando, de pássaros em agonia.
“Nem tudo é tragédia”, você me repreendeu.
“Nem tudo é beleza”, pensei mas não lhe disse.

Páscoa. Pessach. Travessia.

Páscoa. Pessach. Travessia.
Abilio Pacheco

(I)
Sobreviver desertos, transpô-los.
Resistir laços e lâminas;
quaresmas e quarentenas.
Para cruzar o Jordão: Via Crucis.
Terra e corpo tenros.
De alma nova: Ser o mesmo e outro.

(II)
Sem ovos, nem pães fermentados.
Êxodo: o mar seccionado por ventos
E transposto a pé enxuto.
Deixados para trás os grilhões.
De faraó sucumbem nas águas
Carros, cavalos e cavaleiros

(III)
Sem chocolates ou coelhos.
Ramos: entrar em Jerusalém
Após uma plena quaresma.
Transpor as dores da via.
Sofrer a morte de cruz
e vencê-la por todos nós.

(IV)
Sempre êxodo, sempre ramos.
Cruzar o mar e entrar em Jerusalém.
Percorrer a quaresma deserta.
Desvencilhar-se de imundas amarras.
Livrar-se de cruzes e faraós.
Vencer! Vitória e Glória.

(V)
Que caminhos fazemos para
chegarmos a vida plena de hoje?
Quais desafios os nossos
para sermos de fato livres?
Que inimigos devemos vencer
para vivermos triunfantes?

.

Outros poemas meus podem ser lidos aqui.

Imagem extraída de [https://bneinoach.org.br/wp-content/uploads/2019/03/pessach-1.jpg]

Pães podres – poema

pães podres

– abilio pacheco

acordei com uns versos de um poema

se repetindo na minha cachola:

nossas manhãs estão fartas de pães podres

que nos são impostos e que comemos à seca

revirei meus rascunhos a procura

destes versos que me soaram brechtianos

comemos pela manhã à mesa farta

– digo-me de memória um dos versos –

um pão apodrecido que nos impõem

– prossigo inseguro um segundo –

todas as manhãs em silêncio mordemos

certeza que eram de brecht

li dele o que eu tinha à mão

repetindo os versos com variações

não encontrei, entretanto, nenhum

pão matutino podre mordido às secas

– a metáfora do pão não é de brecht

tampouco tenho certeza que seja minha

por isso, não sei se escreverei o poema

sobre os pães podres que nos têm servido

Brecht – poema

… porque assim – do nada – deu vontade de ouvir Brecht.

O Vosso tanque, ó General, é um carro forte
Derruba uma floresta esmaga cem
Homens,
Mas tem um defeito
– Precisa de um motorista

O vosso bombardeiro, general
É poderoso:
Voa mais depressa que a tempestade
E transporta mais carga que um elefante
Mas tem um defeito
– Precisa de um piloto.

O homem, meu general, é muito útil:
Sabe voar, e sabe matar
Mas tem um defeito
– Sabe pensar

Como ciganos à noite

Adaptação da letra de música Sem raízes, de Alice Merton. Dei o título de “Como ciganos à noite” e fiz algumas modificações.

Sabe quando a gente escuta uma música cuja letra é um verdadeiro poema. Sem raízes (No Roots), de Alice Merton, é um desses “poemas que gostaria de ter escrito”.

Peguei a letra no Vagalume e fiz umas mudanças, mas a autoria ainda é dela; por favor.

Sem Raiz
Alice Merton

Eu gosto de cavar buracos
e esconder coisas dentro deles
Quando eu envelhecer, eu espero
Não esquecer de encontrá-los
Pois tenho lembranças
e viajo como os ciganos à noite

Eu construí uma casa
e aguardo alguém que a derrube
E então, empacoto em caixas
Direto para a próxima cidade
Pois tenho lembranças
e viajo como os ciganos à noite

Milhares de vezes
Eu já vi esta estrada
Eu não tenho raízes
meu lar nunca foi no chão

Eu gosto de ficar parada
Mas isso é só um plano
Pergunte-me de onde eu venho
Toda vez responderei uma terra diferente
Mas eu tenho lembranças
e viajo como os ciganos à noite

Eu não posso dizer frases no ouvido
jogando "telefone sem fio"
Apenas os lugares mudam
o resto continua o mesmo
Mas eu tenho lembranças
e viajo como os ciganos à noite

Eu não tenho raízes
Minha casa nunca foi no chão
Eu gosto de cavar buracos
esconder coisas dentro deles
Quando eu envelhecer
Não esquecerei de encontrá-los

Talvez você estranhe a apresentação do texto e a troca que eu fiz do jogo “advinha o nome” por “telefone sem fio”.

De todo modo, vamos lá ouvir a canção também, né?