Terra Brasilis – Paulo Nunes

Li no facebook do professor Paulo Nunes e não me contive em deixar que o poema se perdesse no feed de tantas outras coisas e tantos outros conteúdos.

Terra BrasilisPaulo Nunes
Caio em algarismos,
sou objeção dos numerais: cardinais, ordinais
e no caixa ou sobre o cofre:
um ego ordinário tecla a máquina de calcular.

Nem sei se sou
porcento ou percento,
não hei agora o título inútil de minha humana lisura,
papel que não vale
o quadro na parede.

Caminho entre corpos, os piores são os andantes cadáveres da viv’alienação.
Não cheiram a nada, urubus e corvos são orgulho e desinteresse.

Enquanto me quedo
o barqueiro de Caronte faz seu serviço,
remar remar remar.

Todo dia a TV anuncia que caem
mil à tua esquerda,
mil e quinhentos à tua direita,
a teus pés sucumbem mais mil e poucos,
e o vizinho ambidestro aumenta o volume da eletrola,
indiscreto e vazio.

4.500 em 24 horas.
Sou inútil com os algarismos, já o disse.

Meu peito foi,
a cabeça remoída
olha descarnada as notas no jornal.

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Paulo Nunes é professor universitário de literatura e poeta com vários livros publicados.
Mora em Belém-Pa.

Pureza – 2019

Pureza (2019)– Dir.: Renato Barbieri – Duração: 100’
.
Longa-metragem inspirado em fatos reais sobre Pureza, uma mãe que, após 6 meses sem notícias do seu filho Abel que havia partido para o garimpo no sul do Pará, sai de Bacabal no Maranhão em sua procura, com a roupa do corpo e poucas economias dentro da bolsa. Ela refaz o caminho de Abel e acaba encontrando um sistema de aliciamento e de cárcere de trabalhadores rurais, que os coloca em uma situação de escravidão. Pureza, esperando encontrar Abel, se emprega numa das fazendas, onde testemunha o tratamento brutal de trabalhadores e o desmatamento florestal. Escapa e denuncia os fatos às autoridades federais. Sem credibilidade e lutando contra um sistema perverso, ela retorna à floresta para coletar provas do que relatou em Brasília. Depois de anos, encontra seu filho e suas denúncias desencadeiam um processo de mobilização do Estado brasileiro que liberta milhares de trabalhadores da situação da “escravidão moderna” ou “escravidão por endividamento.

Alfredo Bosi (1936-2021)

Encontrei esta homenagem escrita por Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro ao professor Alfredo Bosi.

Aqui transcrevo pelos mesmos motivos.

Crítico produziu interpretações originais e ácidas sobre a literatura

Lilia Moritz Schwarcz

Pedro Meira Monteiro

Folha de S.Paulo, Ilustrada, 8 abr. 2021, p.B13

Com a pandemia se desenvolvendo de forma desenfreada e sem controle no Brasil, andamos perdendo vozes fundamentais na defesa da nossa tão combalida democracia. É o caso de Alfredo Bosi (1936-2021), que ocupou um lugar único na crítica literária brasileira.

Descendente de italianos do Vêneto, Bosi começou sua carreira acadêmica dando aulas de literatura italiana na USP, para onde levou seu amor pela poesia de Leopardi e pelos personagens angustiados de Pirandello. Bosi também fazia mágica ao misturar um autor como Croce, com sua ideia do sopro vital movimentando a literatura, e Gramsci, com sua atenção às contradições da sociedade capitalista incrustadas na cultura, mas também à ideia de resistência. Desse caldo improvável, bem como de uma cultura literária e filosófica extraordinária, vasta e profunda, assim como de uma militância constante contra a ditadura, nasceram algumas das interpretações mais agudas e originais da literatura brasileira e universal: Vieira, Machado de Assis, Rosalía de Castro, Cecília Meireles, Antonil, Nabuco, Graciliano, Lima Barreto—a lista é interminável.

Interessava a Bosi entender como a liberdade era escavada na escrita, algumas vezes de forma aberta, outras vezes de forma contida e recôndita como se os compromissos e a situação social e política fossem uma força operando dentro do sujeito, ao mesmo tempo contra e a favor dele. O mestre também não opunha a estética à política e aos aspectos sociais. Ao contrário, era essa a sua “dialética”. Essa contradição fundamental foi explorada em aulas na USP, já como professor de literatura brasileira, ao longo das décadas de 70 e 80, bem como no Instituto de Estados Avançados, da mesma universidade.

O resultado dessa militância do espírito, alerta dentro e fora da sala de aula, foi um livro que se tornaria um dos grandes clássicos da historiografia literária brasileira: a Dialética da Colonização, publicado pela primeira vez em 1992. Ali podem ser sentidas as principais linhas de força de sua interpretação, que estão também em outros livros, anteriores e posteriores, como O ser e o tempo da poesia (1977, com nova edição em 2000), Literatura e resistência (2002) e Ideologia e contraideologia (2010). Neles, a resistência não é vista necessariamente como ato heroico e por vezes isolado, mas como uma forma complexa de insurgência, muitas vezes torturada, sentida como contradição. As forças presentes no interior da pessoa, presas, mas capazes de atravessar a fresta de sua máscara social, o emocionavam muito.

Talvez a figura de Eugênia, nas Memórias póstumas de Brás Cubas, seja uma das que mais o fascinavam: “triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa”, até que viesse “para esta outra margem”, escreve o defunto autor. Aí estava um pensamento dialético, combinado a uma sensibilidade fina e um profundo saber histórico que superava, de longe, dicotomias fáceis como pessimismo resistente ou otimismo falastrão; negatividade diante do passado ou confiança cega no progesso. Bosi, tal qual equilibrista, era avesso à mística das ideologias, mas guardava seu afeto pelos projetos de literatos, pelas palavras deles, também entendidos como agentes sociais.

O professor viveu essa forma de resistência e de empatia irrestrita pelos pobres. Uma simplicidade franciscana o unia, em amor completo, a sua querida Ecléa, falecida em 2017, leitora profunda da poesia que ambos amavam, e ela mesma poeta cujo trabalho Alfredo Bosi recentemente recuperou e tornou público. Já o mestre buscou pelo “ser da poesia”—a imagem que “busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens”. O casal era alimentado pela docência e pelo bom conhecimento. Ecléa era professora do Departamento de Psicologia, Bosi do Departamento de Letras, ambos da USP. Os dois lidavam, cada um à sua maneira mas em conjunto, com as tantas memórias que este Brasil costuma esquecer e deixar passar.

Um detalhe engraçado: em 2008, quando foi lançado seu primeiro livro em inglês, Alfredo Bosi fez sua única viagem aos Estados Unidos, mas apenas depois de certificar-se que George W. Bush deixara a Casa Branca. Entrando em Nova Iorque pela ponte do Brooklyn, ao entardecer, seus olhos se iluminaram: “essa paisagem mágica que conhecemos do cinema”, disse ele. Encontrou tempo para passear, comprar um presente para Ecléa, e refletir sobre aquela sociedade que via com tanta suspeita, mas cuja complexidade ele também reconhecia. Em Princeton, conheceu Ricardo Piglia e Arcadio Díaz-Quiñones, com quem descobriu afinidades profundas.

Na chácara em que moraram por muito tempo, em Cotia, Ecléa plantou uma giesta—a flor que, num poema de Leopardi, sobrevive à beira do Vesúvio, “amante de lugares do mundo abandonados, e de infelizes fados companheira”. Bosi lembrou o fato quando recebeu o título de professor emérito na USP, em 2012. A imagem da giesta atravessa sua obra e seu espírito, clara e potente, como se nela se contivesse a força insuspeitada da resistência que foi tema e prática na vida de Alfredo Bosi.

Imagem extraído de www.fpabramo.org.br