A obrigação de ser feliz

A obrigação de ser feliz

Numa postagem no Facebook, li Simone Pedersen falar da tristeza que é o Natal, época do ano em que as pessoas têm obrigação de ser felizes, ou ao menos parecerem felizes. É verdade, vejo, sinto isso; vejo também uma certa obrigação de solidariedade como escrevi numa crônica perdida que publiquei em 2000. As pessoas nem sempre estão sendo solidárias e promovendo um Natal melhorzinho para aqueles que vão passar o ano novo todo na penúria. Elas estão massageando-se. Estão buscando uma espécie de alívio para a própria culpa. A culpa de ter enquanto muitos não têm. E o Natal é a época do ano mais propícia a isso. A pressão pela felicidade, a pressão para ser/parecer bom, a pressão pela fraternização… Pressão que existe o ano todo, porém em menos despotismo.

Trabalhei 2 anos e meio numa escola atípica (pública porém com taxa de mensalidade), carinhosamente chamada por alguns alunos de “fábrica de doidos”. Eu era professor, portanto estava do lado de cá do fabrico. Em posição intermediária, sob jugo de coordenadores, supervisores e diretores (três! – quando cheguei lá este foi meu primeiro grande susto: três diretores) e o pior dos piores: dos colegas mais velhos, em tempo de casa, em idade, em tacanhice. Calejados, pouco lhes doiam cutiladas e de sobra havia alguma disposição para impor-se. O poder não precisa apenas existir, ele precisa constantemente mostrar-se presente.

Uma das formas de expressão desse poder era a alegria, a felicidade. Fora uma ou outra coordenadora que já havia conquistado o direito a ser sisuda, todos eram só sorrisos, todos os dias, em todas as situações. Vi uma dessas pessoas felizes mandar uma aluna retornar para casa por não estar com o uniforme padrão (pior é que a mocinha sem noção escolheu a mais discreta roupa rosa para usar). Fez isso com tantos risos e abraços que eu tinha para mim que a moça não obedeceria. Notícias de expulsão de alunos, aumento de carga horária para os professores, falecimentos de quem quer que fosse, doenças de colegas, eram ditos sempre num mesmo sorriso artificial, fossilizado, standarlizado, automático. Como havia hábito, não eram sorrisos forçados.

Lembro-me perfeitamente de uma colega de disciplina (as salas dos professores eram/são por área, professores de matemática numa sala, de biologia em outra, etc.) reclamar de um colega também veterano na escola que a deixava aborrecido por dia estar alegria, dia não falar com ninguém. Dizia isto para mim, como buscasse apoio. E disse usando frases que muitas vezes ainda ouço (a voz dela que reverbera em tantas outras pessaos como ela e não-raro em programas de tv): “Eu sou uma pessoa alegre, sou uma pessoa feliz. A gente tem ser feliz, não acha? Todos os dias eu chego aqui e digo bom dia do mesmo jeito, sempre com esse mesmo sorriso.” Ela era uma máquina de felicidade, alegrias e sorrisos, até no dia em que discutiu comigo por eu não querer fiscalizar provas de outros professores, ela fez isto sorrindo. Enquanto falava de sua expontânea alegria, eu só queria um brechinha para dizer a frase de Chaplin: não sois máquina, homens é que sois. Eu cedo descobriria que ela tinha mesmo que sorrir, tinha motivo, como muitos seus semelhantes: enganar a si mesma.

Numa sociedade cheia de pessoas insones, semi-despertas, de zumbis inócuos, frívolos, vazios… Dezembro é o mês desta parcela que ri. É também o mês da dogmatização e da arregimentação. Forçada! Todo e qualquer indesejoso de integrar esta rede inadiável de alegria, felicidades e sorrisos está excluído, expulso, estrangeirado. Vejo que esta massa risonha aumenta a cada ano. Todo ano temos novos adeptos, espontâneos ou forçado. Dos que tergiversam, no início, por falta de naturalidade ou costume, soam sorrisos e alegrias falsos. Com tempo, o hábito.

Qualquer dia, qualquer ano desses, eu também tergiverso. :)

Belém, 02 de janeiro de 2014.
Abilio Pacheco

7 comentários em “A obrigação de ser feliz”

  1. Estimado Abilio Pacheco: gostei do seu jeito de observar essa questão do “ser feliz”. Quer seja natal ou não, a busca pela felicidade deve estar atrelada à consciência de acolher verdadeiramente o outro. Na verdade, o que se vê muito por aí é uma baita alienação. Há tanta superficialidade, tanta falsidade. Você é do bem. Abraços, Graça Graúna

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  2. Olá caro Abilio, fico feliz com sua volta nas atividades literárias. Excelente crônica, infelizmente essa “obrigação de ser feliz”, parece que tem que ser somente nessas datas em que o comércio lança cada vez mais a felicidade do consumismo. Na verdade a felicidade não deve ser uma obrigação, mas uma opção de vida, pois muitas vezes não precisamos de muita coisa para alcançarmos essa felicidade, que está dentro de nós e precisa apenas do amor e da fraternidade para se manifestar. Mas nós humanos, sempre queremos a matéria ao invés do abstrato,e assim caminha a humanidade, pois poucos que tem “muito” talvez não a encontrem e muitos que tem “pouco”, com certeza vão encontrá-la além.

    Abraços com carinho.

    There

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  3. Abilio, esse estereótipo de felicidade foi fundido em nossa cultura cristã pela sanha comercial, que em tese é necessário para o progresso, a parte perversa disso é que provoca tristeza e ressentimento nos menos aquinhoados(material e espiritualmente).

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    1. Exato, João Pedro. Ou melhor, concordo.
      Eu mesmo sou um crítico deste processo, embora não consiga me desvencilhar dele. Qualquer dia vai uma crônica mais elaborada sobre algumas coisas que me vem “ruminando” a mente.
      Grato por seu comentário

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  4. É, Abílio, ultimamente tenho pensado bastante sobre algumas fantasmagorias da nossa “pós-modernidade”: imagens de desejo, imagens de ilusão, conforme Benjamin. Fico inquieta com esse comportamento que, em regra, caracteriza nossa sociedade. E especialmente em dezembro me ecoam as palavras de Cecília Meireles: “A cidade deseja ser diferente…enfeita-se de luzes, de coloridos…dão-se presentes, ou melhor, embalagens…”. Vejo tantas luzes e cores, ouço tantos sons…é o novo sempre-igual…Não sei aonde chegaremos, talvez às mesmas imagens do sonho, da novidade conhecida… Então me recordo do carnaval, da páscoa…do dia das crianças… E essa é a nossa vida, a nossa história. Ter um olhar reflexivo e uma postura consciente sobre a história que se constrói não é uma tarefa fácil nem condição dada.

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