Amazônia: Beleza / tragédia

Recebi hoje os exemplares da Antologia 100 Poetas Vivos da @tomaaiumpoema . Muito feliz em estar no mesmo volume com Cidinha Maciel , Marcelo Ariel, a querida @jenifferyara_ e outros tantos e outras tantas poetas.

Amazônia: beleza / tragédia

Quando vi você correndo descalça em direção
à árvore quadricentenária na Ilha do Combú [1]
e depois colocando as mãos espalmadas
na base da samaumeira de mais de 50 metros,
imaginei você trançando os cabelos nos galhos;
conectando-se às folhas e ao tronco igual no Avatar [2].

Faz 10 anos.
Hoje leio os primeiros versos de um poema
que você esboçou quase em lágrimas pela manhã:
“Uma árvore virou cinza na Amazônia.
Inúmeras árvores viraram cinza na Amazônia
nos últimos anos.”

Naquele mesmo dia, coloquei meu ouvido na terra.
Disse a você que eu escutava o choro das árvores,
O clamor do solo sangrando, de peixes sufocados,
De outros animais gemendo e convalescendo.
Você me disse que eu não sabia aproveitar a beleza de Gaia,
a energia da floresta, as vozes e os espíritos ancestrais.

Por isso, não lhe disse que também ouvi sons de motosserra,
De árvores crepitando, de pássaros em agonia.
“Nem tudo é tragédia”, você me repreendeu.
“Nem tudo é beleza”, pensei mas não lhe disse.

Ouro para o Brasil

Estamos em polvorosa, Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro por sua atuação em “Ainda Estou Aqui”!
Liniane Brum

Há uma ferida aberta quando o assunto é ditadura, especialmente quando as lentes – ou as palavras – se voltam para as vítimas do regime. No espaço público a atriz honra essa chaga, com seu discurso sóbrio e figurinos que atentam para o luto, – da personagem representada, da Eunice ela mesma, de famílias-vítimas alquebradas, de um país dividido. No filme, Fernanda Torres atua com a alma, dá corpo à memória de Eunice Paiva e ao desaparecimento de Rubens Paiva.

O filme de Walter Salles contribui, como nenhum outro trabalho fílmico de ficção, para a construção de uma cultura da memória sobre a ditadura militar. Ele partilha com um espectro enorme de pessoas a memória da repressão. É bem sucedido em fazer com que o público empatize com a dor da família Paiva, pois faz isso a partir de um ponto de vista palatável. Uma viúva de um ótimo pai de família, um engenheiro, um homem que sequer “pegou em armas”, mas foi desaparecido pela ditadura. Note-se que o filme apenas menciona a atuação de Rubens Paiva como homem público. Diferentemente do livro de Marcelo Rubens Paiva, não traduz no que ela consistiu, nem vislumbra o quão pacíficas foram as atitudes resistentes do deputado.

Mas as escolhas que tornam o filme, como disse, palatável, não passam apenas pelo ponto de vista narrativo – da família, e, em particular, da matriarca. As escolhas dramatúrgicas são muito responsáveis pela larga adesão do público à história. Não faltam cenas clichês que levam o espectador a estados de "ânimo-padrão". A passagem dos dias de Eunice Paiva na prisão: a contagem dos bastõezinhos, dia a dia, nas paredes da cela, é um exemplo disso. A escolha da linha de atuação da atriz Fernanda Torres, que agora nos põe em polvorosa por ter ganhado o Globo de Ouro, é motor artístico inquestionável.

E há o buraco.

Não um buraco narrativo, mas uma ferida coletiva inseparável do ato de contar essa história. A iniciativa de transformar o trauma em arte, em algo que pudesse transmitir às pessoas não atingidas diretamente pela repressão, a memória da ditadura, durante muitos anos foi serviço dos familiares de vítimas da repressão. Por vítimas eram tomados os torturados, mortos, exilados, desaparecidos, perseguidos. O tempo passou, e hoje se sabe que também são vítimas aqueles que, como Eunice Paiva, passaram toda uma existência convivendo com a dor, os percalços civis e econômicos e o indizível vácuo do desaparecimento, entre outras perpetrações.

O buraco pode ser fechado com esse trabalho? Não sei. Talvez ninguém saiba. (Alguém sabe?) Sobretudo o reconhecimento público, a tentativa de reconciliação no plano coletivo, – eu disse tentativa – por outro lado, dá um passo sem igual a partir do impacto de “Ainda Estou Aqui”. A partir da visibilidade que Fernanda Torres e sua premiação dá, ainda mais, ao filme.

“Ainda Estou Aqui” está a fazer o que governo brasileiro se negou em 2024: celebrar a efeméride dos 60 anos do Golpe de 1964, mobilizar o factual, mas também o simbólico, abrindo espaço para a luz entrar. Propiciar atmosfera para a ferida cicatrizar. Esse bonde que o nosso governo perdeu, a cultura alcançou, – ou alçou. Lamber nós mesmos, por nós – brasileiros – nossas feridas: eis nossa política, mas também nossa arte.

Estamos em polvorosa, Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro por sua atuação em “Ainda Estou Aqui”!

Por Liniane Brum, escritora, sobrinha do desaparecido político Cilon Cunha Brum, morto na Guerrilha do Araguaia.