Diário de um professor

Diário de um professor
(esta é uma crônica de ficção!)

20 de agosto: Reunião de faculdade às 15:30.
4:00 – Estou num hotel. Acordo com o barulho do som da inicialização do Windows no quarto de outro professor. Não consigo mais dormir. Resolvo tomar banho e escovar os dentes para começar o dia.
4:25 – Desisto de ler Dostoievski, pois a leitura de uns pré-projetos sem pé nem cabeça exigem resposta urgente.
5:00 – Zango-me com os projetos que nem triscam na minha linha de pesquisa e apenas beiram de longe minha disciplina. Ligo o computador para ver a pauta, que raramente mandam, da faculdade. Três alunos perguntam por conceitos que estão na porta da faculdade e no site da universidade. Pacientemente respondo-os.
5:2? – Saiu do email e a tela principal do site tem notícias sobre educação. Os cookies sabem que sou professor e me presenteiam com notícias do meu interesse, além de notícias sobre futebol e sexo, temas casados para os provedores. Eles avaliam que o horário é de quem demanda por pornografia.
5:30 – Leio as notícias sobre educação. O mesmo de sempre. Desde a década de oitenta o governo tem projetos para que o espanhol seja lecionado em todo o Brasil. Reforma na carreira e na previdência. E eu que pensei que tivesse direito adquirido de manter a perspectiva de aposentadoria igual a que existia quando iniciei nesta profissão. Afinal, a aposentadoria faz parte da decisão dos jovens quando vão escolher a carreira. Mas os governos mudam as regras do jogo com a bola rodando. Há notícias também que só servem para curiosidade. Alunos na Inglaterra terão aulas de masturbação no curso de Letras e alunos de medicina lerão poemas numa universidade em alhures.
6:10 – O hóspede do dia anterior deve ter programado a tv para despertá-lo e ela liga sozinha. Não me agrada nem me aborrece. Deixo que ela fale, enquanto ainda leio uma notícia sobre a possível greve de professores.
6:25 – Não tem jeito a televisão também tem notícias sobre educação. Não que ela tenha cookie, mas tem novidade na área. Um corte orçamentário no setor e a inibição dos concursos nos próximos seis meses. Não me recordo quando foi a última vez que noticiaram uma ampliação orçamentária ou novas ofertas de vagas na carreira. A ideia da mídia parece ser noticiar o que é ruim. Li num romance a narradora dizendo que há tanta guerra no mundo que acha que o normal do mundo é a guerra, e não a paz. Eu penso diferente: a paz pode até ser o normal, mas não é notícia. Tudo que corre bem direitinho, certinho, não é novidade, por isso não é notícia. Enquanto tenho um vizinho de quarto que liga o computador às quatro da madrugada, outros 30 no mesmo hotel dormem. Mas os que dormem não são lembrados.
6:45 – Eu tinha decidido ontem que ia caminhar pela manhã, mas me distraí. Quem sabe amanhã. Desço para o café.
6:50 – A recepcionista me diz muito sorridente: “Bom dia, professor!” A gente não tem nome. Depois que vira professor (em alumas outras profissões também é assim) a gente perde até o nome próprio. Algumas vezes, alguém diz: “Bom dia, professor fulano!” Isto não aborrece. Gosto de meu trabalho e de ser reconhecido como professor, mas também gosto de acreditar que a despeito disso tenho minha individualidade. Que eu posso em algum momento ser apenas “fulano”. A recepcionista não faz por mal. Ninguém faz por mal. Ouço novamente ela dizer: “Bom dia, professor!” e eu giro a cabeça para responder ‘bom dia’ pela segunda vez, mas ela está cumprimentando outro professor que me reconhece e já começa a falar sobre a pauta da reunião da faculdade e sobre o indicativo de greve.
7:00 – Ele e eu sentamos numa mesa com outros professores. Queria me sentar só. Pensar no nada. Mas nós nos servimos trocando ideias sobre notas, aulas, planos, alunos impertinentes… E fui levado à mesa como o protagonista do Processo, de Kafka. Eu prometo a mim mesmo que não direi nada durante o café, mas sou instado a responder e emitir uma opinião que desagrada a todos. Eles sabem que penso diferente deles mas querem ouvir minha opinião… não sei para quê nem porquê.
7:30 – Não me importo com ideias diferentes nem quero formar séquito, mas a forma como reagem ao que digo me aborrece. Professores são mestres em não deixar o interlocutor terminar uma frase. Subo irritado para o quarto e resolvo ir para a faculdade, embora a reunião seja apenas à tarde.
7:45 – No caminho da universidade, encontro um aluno. Ele me cumprimenta muito aos sorrisos e após me apertar a mão, gira a mão direita para trás como um bandido que fosse sacar uma arma. Retira a carteira do bolso de trás. E da carteira retira um atestado médico. Começa a contar uma história enorme sobre o motivo de ter faltado por duas semanas numa disciplina que durou três. Digo a ele que entregue na secretaria da faculdade. Ele insiste que eu leia o documento e não sei até onde minha paciência vai que não o xingo e todas suas gerações anteriores até encontrar algum parente em comum entre os sobreviventes do dilúvio e nós dois. Insisto para que o documento seja entregue na universidade e ele diz que sou ‘caxias’, que não quero ajudar, que vou prejudicá-lo na disciplina reprovando-o. Daí irrito-me e digo estar atrasado.
8:00 – O prédio da faculdade já está no meu campo de visão, mas uma aluna me grita e corre até onde estou. Chega esbaforida perguntando se vai ter greve mesmo… Eu não faço a menor ideia. “Mas o que eu queria mesmo era…” diz ela e explica, enquanto caminhamos para a faculdade, as ideias que tem na cabeça para um projeto de TCC. Quando falam em valorização do professor, acho que só pensam em salário melhor, melhores condições físicas de trabalho etc. Eu penso nestes microgestos diários que a muito custo a gente tenta conter, mas se assim o faz não demora que logo apareça outro professor para nos apontar errado. Duvido que alguém abra a boca no meio da rua e pergunte a um odontólogo se no incisivo frontal superior esquerdo tem uma cárie. Ter uma sala com secretária que marque horário de atendimento é luxo quase impossível no Brasil e impossível na Amazônia.
8:25 – Chego à universidade e a custo me livro da moça dizendo que me mande por email para eu ler com calma pois naquele momento estava com dor de cabeça.
8:30 – Resolvo ir tomar um café na cozinha pois a secretaria da faculdade ainda está fechada. O secretário que devia chegar às 8h vai chegar na hora que lhe der na telha, assim como vai embora na hora que lhe der na telha. Ou vai embora pontualmente. Na cozinha, a senhora muito simpática pergunta sobre a escola onde colocar o filho no próximo ano e qual seria o melhor cursinho onde matricular a filha que deseja fazer faculdade. Ela quer ainda minha opinião sobre o melhor curso para a moça, o melhor curso de inglês… De repente, o professor é também consultor de carreira. Quando pergunto se viu o colega da faculdade, ela me responde “sente aí, pois hoje é terça” e acrescenta que terça e quinta ele só chega às 9:00 ou 9:30 pois antes vai para um curso de não-sei-o-que e, me piscando o olho, informa que esta uma hora e meia ele compensa não-sei-como. Completa minha xícara com mais café e se põe a falar da falta de educação dos alunos e como nós professores – “o senhor, não, é claro!” é claro!? – somos responsáveis por eles serem assim. Isso me intriga e me chateia. Ao chegar na faculdade um aluno passou por pelo menos 12 anos de educação formal e chiclete em baixo da carteira é culpa do professor atual. Mas não é só. Das 24 horas diárias, um aluno fica na escola de 4 a 5 por dia. Tirando as 8 ou 10 em que está dormindo, pelo menos dois terços do tempo eles ficam com os pais.
9:22 – Chegou enfim o secretário da faculdade. Só ele e os diretores têm a chave da sala. Nem no claviculário dos vigias existe uma cópia. Espero um instante minha colega de café preto terminar um assunto antes de ir para a secretaria. Lá encontro o secretário puxando a porta para fechá-la. Diz-me um ‘bom dia’ seguido do convite para ir à cozinha tomar “um pretinho”. Digo que já tomei e pergunto se posso esperá-lo na sala. Sei que a resposta é não… nunca sei o porquê. E fico esperando à porta da secretaria até que ele volte. Retiro ‘O Idiota‘ da mochila e, ao ler uma página, ouço um som de uma buzina. A coordenadora do campus acena ao longe e eu entendo que ela está me desejando bom dia (e eu respondo acenando também), pois retiro os óculos para ler e não vejo bem à distância sem eles.
9:51 – Enfim o secretario abre a porta da faculdade e eu posso então ligar o computador para ler e fichar um artigo em italiano que encontrei semana passada sobre minha pesquisa. Calculo que irei dar conta das 17 páginas antes do meio dia já que não domino bem o idioma e certamente vou ter que buscar uma ou outra palavra no dicionário online.
10:15 – A bolsista da secretaria do campus abre a porta e me diz que a coordenadora do campus quer falar comigo. Acrescentou que ela estava chateada pois me chamou e fingi não entender. Que fosse logo, pois ela estava esperando e tinha compromisso às 10:30.
10:1? – Minha colega de magistério, que por uma maldade do destino com outros do magistério caiu na função de ser superior, não parecia aborrecida. Se estava, dissimulava muito bem. Ela abriu na minha frente a oferta das disciplinas e mostrou umas tantas sem professor. Nenhuma delas era da minha área. Algumas de áreas próximas. Disse-me que gostaria que eu ministrasse Políticas Públicas numa turma de Pedagogia. Eu aleguei o óbvio: Sou professor de Literatura e meu plano do semestre já está completo. Ela argumentou que todos temos que colaborar, temos que dar nosso sacrifício pessoal, que eu deveria pensar nos alunos que estavam sem aula, etc e que logo haveria um projeto com remuneração extra e que ela se lembraria dos professores colaborativos. Ela falava mansinho, como se controlasse uma represa de palavras, porém o fazia às pressas e cobrindo qualquer voz que me ameaçasse sair da boca. Tentei argumentar tateando (para não atingir nenhum melindre) que seria pior para os alunos não ter um professor da matéria em sala, que seria melhor invitar esforços para a administração superior mandar algum de outro campus, que se a disciplina fosse ministrada toscamente, depois o único responsável seria eu, como já ocorreu com outros professores (e citei o nome de uns sacrificados). Aí, todo o aborrecimento que a bolsista me alertou veio à tona. Ela reclamou que era muito trabalho na coordenação sozinha, que os professores não querem colaborar, que universidade não tem verba para diária para trazer professor de outro campus, que … que… que… e por fim se voltou com raiva para mim. Que os professores sequer respondem a um chamado quando ela acena, fingem não entender e, me despachando da sala com uma voz pastosa e seca, afirmou que eu não ia ministrar por que não queria. Perguntou o que eu estava fazendo no campus naquele horário, se eu nem tinha aula. “Que eu saiba o senhor não tem disciplina nas próximas duas semanas.” E fechou: “Que eu saiba o senhor não está trabalhando hoje.”
10:3? – Saí da sala de coordenação com esta frase lampejando na memória de meus tímpanos como acontece aos olhos quando olhamos diretamente para uma luz. Afinal, acordei às quatro, logo serão onze da manhã e eu não trabalhei nada hoje.

Perto das laranjeiras floridas, 14 de outubro de 2015.
Véspera do dia dos professores.
Observação importante de novo: esta é uma crônica de ficção!

Abilio Pacheco
Professor Universitário

7 comentários em “Diário de um professor”

  1. Parabéns, Abílio! Gostei, é uma ótima crônica. Ao ler percebi que tudo isso faz parte da vida de um professor. Se vc. quiser, pode fazer na continuação um livro que fale sobre as vivências e dificuldades de um prof. O que acha? Abraço, amigo! Gosto de sua escrita.
    Arlete.

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