Sertanojo

Sertanojo

Uma leitora me pediu uma crônica sobre música sertaneja. Chamou-a de Sertanojo. Disse-me não conseguir ficar num ambiente com música sertaneja e que ao chegar num bar só de sertanejo terminou suportando apenas a custa de muita cerveja. (Nestas horas, gostar de cerveja faz uma diferença.) Ela surpreendeu-se, talvez até tenha se decepcionado com meu gosto musical, quando demonstrei certa afeição ao sertanejo, à música sertaneja. Afeição sim, mas não a isto que por aí se chama ou chamamos de sertanejo. Convém esclarecer: Até chegarmos nestes cantores jovens com linguagem urbana e calça jeans tocando um ritmo que, ora se aproxima do rock, ora se aproxima das novas mpb’s, e cantando letras que pouco ou nada lembram a atividade não-urbana, tivemos pelo menos duas fases ou gerações de cantores desse gênero que é bem representativo de uma parcela identitária de nossa nação.

Os primeiros sertanejos, ora ou outra chamados “caipiras”, hoje chamados clássicos sertanejos, mas também conhecidos como sertanejos de raiz (que eu gosto de chamar “sertanejo de verdade”), cantavam usando o sotaque e vocabulários próprios de sua região; a música estava mais próxima das modas de viola de fins do século 19 e início do 20; a interpretação dos artistas era discreta e mesmo sendo apenas a dupla no palco não havia uma supervalorização do artista em relação à música, a entonação em muito se aproximava de um diálogo ou de um cantar baixinho; as letras versam sobre a vivência numa atividade não urbana e muitas vezes ou eram elaboradas em redondilhas maiores ou contavam uma história. Não raro era encontrar canções que lembram os rimances, romances medievais, ou seja, narrativas em redondilhas. Um bom exemplo, creio que até bastante conhecido é o Chico Mineiro, que além de tudo ainda apresenta um drama familiar, bem ao gosto clássico, mas também bem próximo da produção literária medieval da península ibérica.

Depois destes, surgem as duplas que ainda hoje estão por aí. São formadas por pessoas cuja origem é rural, foram criados em fazendas e seus pais (ou eles mesmos na infância) desempenharam atividades pecuárias ou agrícolas. O sotaque parece suavizado e o próprio vocabulário empregado passa a se aproximar mais do urbano; as músicas passam a incluir outros instrumentos e a semelhança com a moda de viola vai aos poucos se perdendo; na interpretação, a figura do artista passa a ganhar relevo, surgem os backvocais e a entonação vai ganhando esta característica espremida (de prisão de ventre) que conhecemos hoje; as letras vão abandonando a temática anterior e passando a incorporar o ritmo das cidades e, mesmo as canções de amor, perpassam por questões ligadas à vivência urbana; não só a redondilha deixa de ser usada (afinal, eles não sabem o que é metrificar) como qualquer outra aproximação com a literatura e a cultura literária é abandonada. Esse processo de empobrecimento artístico só piora depois que alguns artistas passam a fazer carreira solo. O sertanejo ganha adjetivo: romântico-sertanejo.

Hoje já são muitos os qualificativos postos ao “sertanejo” (batidão sertanejo, sertanejo universitário, entre outros). Os cantores em pouco ou nada lembram os cantores caipiras. O sotaque sumiu de vez e o vocabulário não só é urbano como beira a variação etária da juventude, não vou me assustar se ouvir qualquer dia uma gíria numa canção desses jovens; a música ganhou ritmo moderno, arranjos sofisticados e instrumentos eletrônicos, além da diversidade de músicos no palco; as letras se urbanizaram de vez e o tratamento temático se aproxima do rock ou mesmo do pop-rock, o valor estético costuma sofrer mais a influência de uma cultura musical de outros ritmos que de uma cultura literária. Além desse ponto (relativametne) positivo, os cantores jovens diminuem (outros abandonam totalmente) a intensidade do cantar puxado, espremido, dos segundos sertanejos. Ao contrário dos primeiros sertanejos, ou dos caipiras, estes em nada se assemelham a pessoas advindas de áreas não-urbanas. Aqui, e na maioria da geração anterior, é difícil perceber que se trata de música sertaneja, ou mesmo difícil de classificá-la assim. Afinal, o caráter identitário ligado a um certo Brasil (a parcela sertaneja especialmente de Minas e Goiás) parece substituído por um caráter identitário de feição nacional totalizante.

Não consigo reconhecer estes como sertanejos. Posso gostar da música que fazem, posso encontrar nela qualidades artísticas e musicais ausentes nos segundos, mas tenho uma resistência a aceitar a classificação. Já os segundos são frutos bem sucedidos de estratégias de publicidade, são fenômenos próprios da indústria cultural (alguém ouviu as trombetas soarem?), eles estão bem classificados como românticos e ponto. Já os primeiros, caipiras, sertanejos de verdade, que abriram picada na mata em época sem internet, com a tv ainda em surgimento e tendo apenas o rádio como aliado, que não tiveram empresários e estratégias de marketing, nem usufruíram o que a indústria cultural proporcionou a partir da década de 60/70, que realmente sabem/sabiam o que é/era o sertão, a vivência nos rincões deste país… Deles, eu gosto, admiro, ouço com satisfação e contentamento. A música deles, sim, unicamente deveria se chamar “música sertaneja”.

02 de Fevereiro de 2011.
Abilio Pacheco, professor, escritor

Algumas observações:
1) o título da crônica foi citado pela primeira vez por Rosa NEPOMUCENO. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo, Ed. 34, 1999.
2) a divisão que faço não tem fundamentação acadêmica, mas sugiro a leitura de um texto que faz uma divisão diferente da esboçada aqui, porém com fundamentação em pesquisa: Ivan VILELA. Cantando a própria história. Disponível em: www.musicadesaopaulo.com.br/ivan_vilela.pdf.
3) Outro texto fruto de pesquisa acadêmica que merece nota aqui é a Dissertação de Mestrado de Elizete Ignácio dos SANTOS. Música caipira e música sertaneja: classificações e discursos sobre autenticidades na perspectiva de críticos e artistas. Disponível em: http://www.ppgsa.ifcs.ufrj.br/mestrado/Texto_completo_226.prn.pdf

24 comentários em “Sertanojo”

  1. Prof. parabéns pela crônica, falou tudo e mais um pouco.
    Concordo plenamente c/ vc, ñ se faz mais música sertaneja c/ antigamente,
    se bem q até gosto d alguns, mas c/ ñ sou d ouvir muita música mesmo, pra mim tanto faz c/ tanto fez…
    Mas parabéns novamente…

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