Hoje não escrevo

Hoje não escrevo

Eu sabia que mais cedo ou mais tarde, ou como dizem mais tarde menos tarde, ia acontecer de eu ficar sem assunto para a crônica da semana e daí fosse aborrecer o leitor citando ninguém menos que Drummond. Mas eu já disse que tenho crônicas guardadas para quando acontecesse algo assim. Quando acontecesse de assunto algum da semana motivar-me a escrever.

Ora muitos assuntos ainda me dão vontade de escrever. Assuntos hodiernos diga-se. Poderia falar a operação cavalo de tróia em andamento no governo, dos desandos do ENEM, poderia até compará-lo com o ENADE, falar da crônica que pela primeira vez fez pararem-me na rua para comentar algo sobre ela (ainda a crônica do dia dos professores). Poderia postar uma crônica sobre cidades, meu tema de obsessão, mas que pouco apareceu nas crônicas até o momento.

Aliás, as crônicas publicadas são de contar nos dedos. Nos dedos de uma só mão, creio eu. Devo ter mais crônicas guardadas, certamente mais crônicas iniciadas que postas a lume. Preferi deixá-las todas (meia dúzia de crônicas prontas e mais de uma dúzia começadas) para um outro momento.

Disse que hoje não escrevo. Mas vou escrevendo e logo este texto estará no blog/site. Desta vez não vou mandar mala direta para meus leitores assinantes (exceto aqueles que receberão a mensagem automática do wp). Vou caladinho e quietinho fazer a postagem e esperar para ver. Mas o motivo para não escrever hoje é mesmo outro. Qualquer dia vai uma crônica sobre isto que é um tema bem pessoal, mas também bem da ora: em Marabá perdi um ex-aluno e colega de magistério possivelmente por conta da homofobia.

Mais de uma vez abri este note para escrever o texto de quarta a respeito. Mais de uma vez refuguei. A palavra aqui não vale nada, uma vida não vale nada nestas plagas onde Saramago pediu que jamais Deus tivesse a ideia sublime de por os pés. Diante da realidade atroz, a sensação de impotência, impotência diante do intolerante, da incapacidade do sujeito aceitar o outro como ele é. Não apenas de aceitá-lo diferente de si, posto que todos somos diferentes dos demais, mas a incapacidade de aceitar o outro naquilo que o sujeito não aceita que o outro seja. Calo-me!

… vai essa crônica encerrar abruptamente. Sabia que ora ou outra faria uma crônica dizendo que não iria escrever, mas não pensei que o motivo pudesse ser este.

Belém, 23 de novembro de 2010.
Abilio Pacheco, professor, escritor
ps: ao Mário, professor de língua portuguesa,
Marabá, PA.

10 comentários em “Hoje não escrevo”

  1. Homofobia.
    … está na raiz da moderna formação humana.
    As leis, as tradições patriacais e as religiões tradicionais (nesse sentido são maioria existentes) truxeram o conceito e tratamento heteroxexual como regra. Então, a sociedade é culturalmente heteroxexual.
    Lamentamos pelos fatos que no passado mancharam a imagem do ser humano, quando perseguidos os “hereges”, as bruxas e outros mais… que realmente, como o Mestre Abílio coloca, “que jamais Deus tivesse a ideia sublime de por os pés”.
    Porém, hoje estamos passando por novas transformações sociais (sou otimista). A liberdade de sentimentos está clamando e sendo ouvida, sei que ainda minimamente. Mas acredito na revolução.

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  2. Hummmmm isso daria prosa para mais de hora… ainda mais que li os comentários também, alguns muito bons, outros nem tanto… você tem razão em tudo que disse, expondo sua cronica ou respondendo a comentários. É muito triste e sobretudo, perigosa, essa irrelevância com os homossexuais, porque na verdade eles são apenas uma desculpa para aqueles que se julgam perfeitos e buscam a perfeição nos que passam ao largo… quem agride ou mesmo critica um homossexual, será que já avaliou a possibilidade dele também ser persona non grata para alguém? Por motivos vários que não vem ao caso expor e nem me cabe, masssssss seria bom que os adeptos do “ser humano perfeito” pensassem nisso e descobrissem, quem sabe, que isso não existe… Obrigada pelo envio, gostei demais de vir aqui ler e certamente aprendi mais um pouquinho. Um feliz Natal, muita luz, paz e inspiração! Abraços de São Vicente para você. TerePenhabe

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  3. Caro Abílio,
    Vivemos em dias maus. Desculpe-me o tom pessimista, mas, às vezes, este sentimento me inunda diante de fatos como o que você relatou em sua crônica. Certa vez, eu e alguns amigos de trabalho comentávamos sobre alguns travestis que fazem ponto perto do Hotel Glória na Glória. De repente, alguém que não participava da conversa, mas devia estar ouvindo tudo atentamente, disparou: Esses anormais, aberrações!. Instantaneamente me calei. A minha vontade foi imediatamente levantar-me e esmurrar quem havia proferido tal comentário. Mas me calei e fiquei grudado na cadeira ruminando aquelas malditas palavras. Vivemos em dias maus, Abílio, em dias que, infelizmente, insistem em perdurar. Grande abraço.

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  4. Caríssimo cronista:

    Você se mostra bem organizado e prevenido. Ter crônicas prontas para um momento de “spleen” é muito interessante. Falar sobre o velho e amado Drumond por muitas vezes seguidas não estressa leitores sérios. Tocar no Dia dos Professores tampouco. Quem, melhor que eles, não merecem dos nossos escritores algumas linhas?
    Não sei se o amigo notou, mas depois que o Congresso se meteu a aprovar punições aos homo fóbicos as coisas pioraram. Como estava, estava muito bem: por que foram destacar a preferência de alguns seres humanos (isso já vem desde os tempos de Roma, da Grécia dos sábios filósofos e de muito mais distante no Tempo) e alardearem como se fosse um grande favor àqueles que insistem ojerizas ao chamado sexo oposto preferindo o contato físico às pessoas do mesmo sexo? Não sou a favor das mostras ostensivas. Cada uma ame de jeito que desejar, mas, de preferência, longe dos olhos de quem não admite a escolha homossexual. Nós sabemos que o Brasil é um país de machões. Esses não aceitam que outros elementos de sexo igual pugnem por seus direitos de escolhas. Esses que aí perderam suas vidas preciosas não são os primeiros como não serão os últimos. Esse ranço de impunidade existente cá em nosso território concorre para a multiplicação dos atentados contra essas pessoas.
    Bem, faça de quaisquer assuntos o mote de suas crônicas, presentes ou futuras, afirmo que você terá, sempre, seus fiéis leitores a postos. Parabéns pela excelente crônica. Abraços.

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    1. Em geral não respondo aos comentários aqui. Mas desta vez, creio ser absolutamente necessário.
      Caro Morani,
      Quando você afirma: “Cada uma ame de jeito que desejar, mas, de preferência, longe dos olhos de quem não admite a escolha homossexual” pode estar dizendo também: “cada um (———) que desejar, mas, de preferência, longe dos olhos de quem não aceite (——–)”.
      Creio que a tolerância (agrado-me pouco do termo, mas é este mesmo) não é aceitar que o outro tenha preferência sexual, política, religiosa, desportiva etc longe dos olhos de quem pensa diferente. Mas sim que possa ser o que é, perto de quem quer que seja. Principalmente de quem lhe é contrário.

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  5. Nossa, Abilio, que bela crônica! Compartilho da mesma ideia e, como maçom e evangélico que sou, tenho falado aqui e acolá, nas minhas crônicas, contra o preconceito e intolerância, notadamente na seara religisosa. É preciso saber compreender as coisas e as pessoas sem necessariamente ser contra elas ou a favor delas. Também fiquei muito com a morte do Prof. Mário, embora não tivesse relacionamento com ele, só o conhecia de vista. Para mim, é 10! Parabéns, meu caro!

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  6. Certa vez, “conta alguém” Que um camarada fez um pacto com o diabo para que lhe enchesse as burras, e assim aconteceu, o diabo lhe disse, lhe darei dinheiro todos os dias, mas tem que ser gasto, passou o tempo, e lá um belo dia, a camarada capitulou, não tinha mais em gastar tanta grana, e foi entre a Alma ao diabo, “Aqui tem a minha Alma não tenho em gastar o seu dinheiro.
    E o danado do diabo lhe parguntou “Ò infeliz, nunca ouviste fala na Caridade? Ai gastarias toda a fortuna do Mundo e ainda ficaria em falta com ela!

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  7. Quando nos calamos muitas vezes acabamos por dizer mais. Esta tua crônica tem uma aceleração. É como se ela tenha sido escrita de um fôlego só. Gostei muito de ler. Nos faz pensar que as vezes o turbilhão de idéias pode ser tão grande, que simplesmente temos que calar, pois a velocidade das idéias transcende um código intelegível, sobrando-nos apenas a sensação.
    Foi isso que teu texto suscitou em mim.
    GRANDE ABRAÇO, GOSTEI DE LER.

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